Regresso

Por toda a parte espectros
Do mapa percorrido em cinco e quarenta
Prolongados anos


A cidade encontra
O espectro do que eu fui
Saído dos horrores da adolescência


Filtra obscuramente
O meu imo
Que não conheço


Vem
[irreconhecível
Ao meu encontro


Tacteamo-nos no escuro
Apaixonadamente


O amor é cego
Mas só ele permite
Realmente ver

Londres reencontrada

O passeio do outro lado da rua


Gente
Que não conhecerei nunca


Ninguém mais nesta mesa
De um café milenário –
Raras vezes
Terei estado menos só


A nave espacial chamada terra
Singra comigo tarde adiante


Tudo volve milenário
As pedras da rua
O cimento gasto do passeio
As recordações

Vermeer

To John McEwen


A arquitectura das mangas
Brancas
De quem vai respondendo
A uma carta
(No chão de mármore
O lacre
Saltou
Da carta amarrotada)


Delft
Labirinto
Exteriorizado
Em meditação frontal
Sereníssima


A claridade
(Vinda das janelas)
As sombras
As transições
O deleite
Nos espaços confinados
E inteiramente abertos
À imaginação


Chão
Geométrico
Limpo de tudo
Menos do passado e do presente


O presente
Içado das profundas imemoriais
Sem resquício algum
De nostalgia


Tudo é
O que ali está
E o que ali está
Nunca mais acaba


É o concreto absoluto
E quase insuportável
De quem viu claramente visto
Como um danado


Cada detalhe vive
Inteiro
Íntegro –
Sua importância é igual
Ao inteiro mundo


O mistério dos mistérios
Ali está
Visível
Manifesto
Mas ninguém sabe o que é
Só quem pintou o real
Em toda a sua nudez

Austin revisited

a Svatava Jakobson


O verde é muito verde
A luz mais clara
Do que nunca
As recordações são do tamanho
Do coração transbordante


O calor é Apolo
perpendicular à terra


Os pássaros
os esquilos
Atravessam a imaginação numa diagonal sem fim

Copo de água

Que maravilha um copo de água!
Que transparência saborosa
Penetra a luz nos nossos lábios
Como nos olhos uma rosa.


Ó material, imaterial
Incandescência, ponte clara!
Brasão da terra, misterioso,
Da terra boa, terra amara.


Ó doçura que nos inunda
Como um clarão vindo de tudo,
Ó água que vais abrigando
Neste copo teu riso mudo!


Mudo? Não sei. Talvez caudal
Já tenhas sido, eco celeste,
Céu que te abres ao corpo súplice,
Seda que a sede humana veste!

A Mouzinho de Albuquerque

Tinhas o germe odioso dos tiranos
O fogo sinistro da intolerância
Mas que era feito duma só palavra
Herói soberbo
Ó árvore gigantesca
Que tu próprio abateste
Em vez dos deuses
Que te contemplam a distância

Não encontraste a rua

Não encontraste a rua
Não encontraste a casa
Não encontraste a mesa
No café que alguém
Por engano indicou.


Mas a cidade é esta
E não outra


Não encontraste o rosto


O anel caiu
Ninguém sabe aonde.

Moçambique

Ó Oriente surgido do mar
Ó minha Ilha de Moçambique
Perfume solto no oceano
Como se fosse em pleno ar

Lourenço Marques Revisited

A água que murmura espectros lentos
O que houve e não houve e não volta nunca mais
Os quartos sem esperança que os guardasse
As casas sem anjo da guarda


A luz intensa bela e dolorosa
A adolescência dilacerada
A ternura dezoito anos recusada
Na casa dos Átridas
O crime horroroso que não houve
Mas as feridas abriram manaram um sangue
Que penetra implacável as fendas do sono
E me deixa acordado à beira da estrada
Com lágrimas que percorrem
Trinta e quatro anos

Jóias

Jóias que imensa madrugada
De estrelas na ilha alegre
Do riquechó contemplo as conchas
Celestes a cintilar
São conchas algas são prodígios
Do mar que os deuses cravejaram
Assimetricamente musicalmente no firmamento

Hino ao Tejo

Ó Tejo das asas largas
Pássaro lindo que se ouve em todas as ruas de Lisboa
Ó coroa duma cidade maravilhosa
Ó manto célebre nas cortes do mundo inteiro
Faixa antiga duma cidade mourisca
Fênix astro caravela liquida
Silêncio marulhante das coisas que vão acontecer
Deslizar sem desastres sem fado sem presságio
Tu ó majestoso ó Rei ó simplicidade das coisas belíssimas
Nas tardes em que o sol te queima passo junto de ti
E chamo-te numa voz sem palavras marejada de lágrimas
Meu irmão mais velho